AULA DA SAUDADE – FORMANDOS DIREITO UCSAL 2001.2
Quando fui informado da minha designação para ministrar a chamada "aula da saudade", fiquei com sérias dúvidas sobre o que deveria falar.
Qual seria o sentido de uma “aula da saudade”?
De certo, não seria a apresentação do equivalente a um pequeno discurso de paraninfia, pois isso seria usurpar uma função para a qual não fui escolhido.
Da mesma forma, proferir uma aula dogmática sobre um tema jurídico, mesmo para um apaixonado pelo estudo do Direito, soaria um tanto insosso e desarrazoado para esse momento, que é o fechamento de um ciclo e o início de uma nova etapa de nossas vidas.
Fazer também um longo relato de vida pareceria pernóstico para alguém de minha idade, pouco mais velho do que a maioria dos formandos e mais jovem do que muitos deles.
Assim, optei por fazer uma exposição, em forma de aula, como solicitado, pelo menos na minha forma de aula, sobre algo que nos parece evidentemente comum: a AMIZADE.
Falar de amizade é algo que me dá prazer.
Falar em amigos, como amigo da turma, é falar do nosso relacionamento, das nossas vidas, sentimentos e esperanças.
Como canta o insuperável Milton Nascimento, “amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves, amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito, junto do coração, assim falava a canção...”
A palavra amigo é muitas vezes vulgarizada no nosso dia-a-dia.
Falamos em amigos da escola, do bairro, do bar (do Omolu), do baba, amigos, amigos, amigos.
Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar...
Só que a vida nos ensina, e isso cada dia mais cedo, que a amizade é uma jóia tão preciosa que poucos se atrevem a falar que a tenha em abundância.
Amigos adjetivados se tem aos montes; mas amigos-amigos, de verdade, nas mãos, sobram os dedos.
"O amigo é uma marca que a gente leva na testa;
é aquele que está presente quando nada mais nos resta;
não é uma maquiagem que sai com a água e sem saudade,
mas sim uma tatuagem incrustada na alma de verdade...”
Amigo é o pai ou o irmão,
Que a gente elege pelo coração...
Achar um amigo de verdade definitivamente não é fácil.
É achar um tesouro...
É estar a seu lado em qualquer momento, a qualquer hora...
É complicado ser amigo de alguém!
E na procura por um amigo, a gente se machuca muitas vezes.
A gente se engana, elegendo como apóstolos e irmãos pessoas que nos traem com um beijo, com a cara mais limpa do mundo, como se nada tivesse acontecido.
Todavia, nada disso deve nos desanimar na busca pela verdadeira amizade.
São só os ossos do ofício, o preço que se paga, uma espécie de compensação ideal pela imensa felicidade do encontro do verdadeiro Amigo (com “a” maiúsculo).
Há dois anos, por exemplo, saí do corpo docente da UCSAL. Ser lembrado por vocês, depois de tanto tempo, é uma enorme e emocionante prova de amizade.
E é com carinho e estima paternal, que renovo os votos de fidelidade e amizade, votos esses cultivados não somente na sala de aula, mas também no tribunal ou até mesmo em minha casa, onde muitos foram, vão e por certo continuarão a ir.
Mas isso é para ser uma aula! Alguns devem estar pensando: será que ele vai fugir do tema?
Não, se é uma aula sobre amizade, justamente a nossa amizade, é no testemunho do que penso de vocês; do que sinto por vocês e do que acho que vocês devem continuar fazendo e crendo no futuro que se encontram as derradeiras lições.
A primeira coisa que vejo que em muitos de vocês, por mais paradoxal que seja (em uma turma em que a esmagadora maioria está na faixa etária dos vinte e poucos anos), é uma MATURIDADE intelectual precoce.
Um homem não se mede pelos anos que viveu, mas sim das experiências que colheu da vida, por mais curta que seja. Em minha ainda jovem existência, conheci quarentões infantis e vintenários maduros e prontos para a batalha, sem que isso me soasse estranho.
Vejo um enorme potencial intelectual em vários de vocês. Não os nomino individualmente para não parecer injusto ou discriminatório, manifestando eventuais preferências pessoais. Minha intenção, de fato, é apenas lembrar, invocando Caetano, que “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome...”
Continuem brilhando! Em cada manifestação oral, cada peça processual, cada artigo redigido, não se esqueçam que vocês foram formados para ser gente, e não papagaios que devem repetir apenas o que já foi pensado em priscas eras, vendo, com Cazuza, “o futuro repetir o passado, um museu de grandes novidades...”
Por isso, outra característica que destaco, nessa aula sobre a nossa amizade, é a OUSADIA.
Vi estudantes vencendo profissionais em concursos jurídicos.
Vi alunos escrevendo trabalhos que muitos de seus professores jamais pensaram em fazer.
E – acompanhando-os de longe – vi que carimbar votos, com protestos por melhor qualidade do ensino superior, em eleições para reitor e diretor é uma coisa que poucos teriam a ousadia no passado recente de nossa faculdade.
Por mais que muitos achem tais posturas desrespeitosas, o fato é que não se aprende a andar sem tomar alguns tombos, como minha pequena Marina está me ensinando atualmente, e não se muda uma mentalidade sem chocar aqueles que estão acostumados com o conforto da mediocridade.
Fazer isso será sempre um ato de ousadia, coragem e - porque não dizer? - de santa loucura.
Quantos loucos já não mudaram a história? Quantos loucos já não entraram para a história como visionários de uma realidade que poucos vislumbravam?
É certo que se paga um preço alto pela ousadia. Muitos loucos (ou ousados?) foram trancafiados, seja fisicamente, seja pelo isolamento opressivo imposto por aqueles que se sentem incomodados pelo novo. Mas quem tem a ousadia de olhar o horizonte, não tem o direito de desanimar diante da vizinhança da pasmaceira.
E por isso eu trago, como mais uma característica da nossa amizade, o RISO.
Sim, é isso mesmo, o riso, a gargalhada, o sorriso, o direito de estar de bem com a vida, de ser alegre e feliz.
É preciso combater, como vejo a nossa geração fazer, a postura “urubuliana” de alguns profissionais do Direito, de achar que a maturidade e a ousadia intelectual devem se confundir com a sisudez, como se a seriedade de um trabalho jurídico fosse diretamente proporcional ao tamanho da carranca de seu autor.
Certas autoridades, inclusive, parecem exigir, como requisito para sua legitimidade, ter uma nuvem negra sobre suas cabeças, fazendo com que suas manifestações soem sempre graves e solenes, como se fossem as trombetas do apocalipse ou os menestréis do fim do mundo. Tal mal contagia, lamentavelmente, todos os campos de nossa atuação, influenciando a própria sociedade, que parece exigir que, ao se optar pelo mundo do Direito, toma-se assento na escola dos deuses supremos, acima do bem e do mal, em que não se pode sequer imaginar que reles mortais vejam a cor de sua dentição.
Não aprendam, em qualquer lugar que seja, que um profissional deva ser carrancudo, mal-educado ou prepotente; que não cumprimente os mais fracos, nem que seja subserviente aos poderosos. Trata-se da mais estúpida violência que se perpetra contra a espontaneidade do ser humano, enquanto operário do Direito.
Lembro, inclusive, que certa vez, uma colega declarou que não gostava de um certo profissional porque este "vivia com um sorriso bobo na cara". Se isso é um defeito, eu gostaria de ser eternamente um pecador.
E é rindo que justifico todas as nossas loucuras em sala de aula: nossos cascudos nos meninos e despentear de cabelos nas meninas; nossas aulas aristotélicas e peripatéticas; nossa imensa vontade de acertar, mesmo quando visivelmente nos equivocamos.
Quando os chamo de “enrolados”, “fujões” e “ingratos”; quando faço um terrível drama, dizendo que estou “abandonado”, “jogado às traças” e “esquecido no ostracismo do tempo”, nada mais estou fazendo do que, pelo riso (ou pelo ridículo), mostrando todo meu carinho, amizade e amor por vocês.
E esta aula da saudade se encerra justamente com a constatação do que realmente vale a pena na vida: o AMOR.
Na célebre de carta de Paulo ao coríntios, relembrada na poesia do bardo da nossa geração Renato Russo, "ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria”.
Amar sempre valerá a pena! Mesmo quando a gente se machuca, por ter se entregado de alma aberta, sempre valerá lutar pelo amor.
Quando eu acordo cedinho e vou ao quarto de minha filha, vendo-a dormindo, renova-se em mim a chama do amor.
Vi o parto de minha mulher do começo ao fim, fotografando tudo com minúcias de pesquisador, sem perder o controle. Todavia, quando recebi em meus braços a minha pequenina flor, chorei, chorei um choro de criança pequena, que se vê viva e descobre que viver é bom.
E é com um amor parecido com esse, que só entende quem já viveu tal experiência, é que hoje olho para vocês, grandes, crescidos e formados, prontos para novas aventuras e desafios.
Nesse novo mundo que se avizinha, vejo, de amigo, como amigo e para amigos, renovar-se a fé na vida, pois enquanto houver amizade, enquanto houver, adaptando os mandamentos de Thiago de Mello, um único homem que confie no outro homem, como o menino confia no outro menino, enquanto o amor for o início e o sentido da amizade, a humanidade não terá perdido o seu único direito irrenunciável: o de ter esperança.
A mizade
M aturidade
O usadia
R iso